A autobiografia de Preta Gil, “Preta Gil – Os Primeiros 50”, é muito mais do que uma retrospectiva de vida. É uma travessia. Entre perdas, amores, vaidades, racismo e a luta recente contra o câncer, a artista constrói um mosaico visceral de memórias — sem poupar o leitor, nem a si mesma.
Logo nas primeiras páginas, Preta começa pelo que seria o fim — uma hemorragia intensa, o diagnóstico de um câncer no reto e uma cirurgia de emergência em meio à infecção por Covid-19. E como se não bastasse, a descoberta da traição do então marido, Rodrigo Godoy, e uma separação turbulenta que coincidiu com um quadro de sepse. Tudo isso em 2023, num enredo que ela chama de “o ano mais difícil da minha vida”.
O peso da herança e a construção da própria voz
Filha do ícone tropicalista Gilberto Gil e de Sandra Gadelha, Preta nunca seguiu os trilhos que pareciam desenhados para ela. Cresceu cercada por nomes da MPB, mas demorou a reconhecer a veia artística que pulsava em si. E quando a encontrou, foi por um caminho próprio — e corajoso.
Em 2003, ao lançar seu álbum de estreia, “Prêt-à-Porter”, Preta apareceu nua na capa, coberta apenas por fitinhas do Senhor do Bonfim. A imagem virou símbolo de ousadia e de afronta aos padrões estéticos, mas também a colocou no centro de um furacão de críticas gordofóbicas.
“Achei que estava arrasando”, relembra.
Mas o baque veio rápido. Até o pai, Gilberto Gil, reagiu com reservas.
“Desnecessário, Preta”, teria dito, numa frase que ecoou como um alerta.
Entre vaidades, vícios e julgamentos
O livro não suaviza arestas. Pelo contrário. Preta fala abertamente sobre sua compulsão por compras, que chegou a comprometer seu patrimônio e o futuro do filho, Francisco.
“Eu suava frio de vontade de comprar”, revela.
Tratou-se com psiquiatra, usou ansiolíticos e aprendeu, dolorosamente, que não se preenche ausência com bolsas de grife.
O consumo, segundo ela, foi uma resposta direta às dores da rejeição.
“As mães das minhas amigas diziam: ‘Olha lá, é a filha do Gilberto Gil, preso com maconha, negra, doida’. Isso fere uma criança. Quando você cresce, tenta se proteger como pode.”
Identidade, negritude e o letramento pelo erro
Apesar de ter nascido de pele clara e cabelo liso, Preta só entendeu os contornos do racismo brasileiro com o tempo. A relação com sua negritude é um dos fios mais poderosos do livro. Aos oito anos, em uma visita à Igreja do Bonfim, pediu três coisas: um cabelo black, um namorado e uma Barbie.
“Nenhum deles veio naquele verão” , conta com humor.
Mas o amadurecimento racial veio também com tropeços. Ela narra o episódio em que foi vaiada em uma palestra em Salvador, após usar termos como “mulata” e “denegrir”. Foi o momento em que, segundo ela, se deu conta do quanto precisava reaprender.
“Esse episódio foi emblemático. Me fez repensar atitudes, vocabulário, e fortalecer posturas afirmativas.”
Amor, perdas e liberdade
No campo afetivo, o livro tem passagens delicadas. Preta fala de duas perdas gestacionais durante o relacionamento com Rafael Dragaud, o luto pela morte do irmão Pedro, aos 19 anos, em um acidente de carro, e a importância de Gal Costa — madrinha e referência afetiva — em sua infância.
Quando o assunto é amor, a cantora é direta: não esconde sua liberdade e entrega apenas o necessário.
“Estou apaixonada por duas pessoas, um homem e uma mulher” , escreve, sem revelar nomes.
“Sou livre. Posso ficar com quem quiser, na hora que quiser.”