Episódio 43 – Fanáticos legais
‘Você conhece fanáticos legais?’
ironizou Braz e atalhou:
‘Fanáticos nunca desistem, só retrocedem estrategicamente.’
‘Eu sei, mas por hora aquele sujeito horrivel, Franz e a sua medusa travestida de borboleta parecem ter esquecido.’
‘Oh Jeusa, a vingança exige ressurreições sequenciais, nunca morre. Esse cara não vai desistir. Acho até melhor você avisar o Ficci e o Afanes para darem um tempo, sei lá pedir asilo em Portugal, ou na Itália.’
‘Acho que já tomaram o chá’
‘O chá?’
‘O chá de sumiço’
‘Sei lá. Você está de brincandeirinha. Mas eu é que fui empurrado pela janela, eu sei do que eles são capazes.’ E ergueu a perna enfaixada.
‘E evidentemente você não lembrou de incluir no seu armistício o coitado do Ficci ou o Afanes?’
‘E por acaso alguém esquece de colocar os aliados em um acordo?’
E Jerusa, como nos relatos de experiência de quase morte, repassou tudo que passou nos últimos dias: o encontro falsamente fortuito com Afanes, uma banca que havia sido indicada por Braz. Depois a indução para ir conhecer o Dr. Ernesto Ficci no Cosme Velho, que lhe trouxe um dos momentos mais próximos de Machado de Assis. Mas, ao mesmo tempo, também aportou-lhe um sofrimento desmesurado.
Lembrou da exótica Penélope e de sua enigmática textura e da transparência de sua pele, seria um fantasma? Viu novamente a biblioteca onde nunca estivera tão intima da atmosfera xamanica do espirito dos livros. Reviu a perseguição e o acidente provocado pelos gangsters que sempre justificam o terror e a violência com álibis falsamente libertários. Lembrou de tudo que Braz a faz passar, da raiva, da humilhação, do roubo dos diários e do amor absolutamente injustificado que contamina o espirito. Ela, que reteve um patrimônio único e insubstítuível: a posse precária que teve, de seu objeto do desejo, as duas cartas do Machado.
“O que mais queremos é o que menos dura”. E pensou em escrever uma ficção com este titulo.
Ela, que teve acesso a uma espécie de mina única, de um escrito que mudaria o destino de uma interpretação equivocada.
Ela tinha certeza que a carta ainda estava em sua bolsa. Dormiam colados no sofá, Jerusa desvenciliou-se habilmente de Braz retirando seu pulso pendente de seu ombro e foi inspecionar sua bolsa.
Lá encontrou apenas uma substituição: um datiloscrito “Amor Bisexto” de autoria de algum escritor contemporâneo que ela apenas ouvira falar: Herch Muabnesor. Quem subtraira as duas cartas do Machado de Assis? Afanes, Ficci, a enfermeira Irma, Sobral? Talvez o próprio policial da Interpol, Ingmar.
Jerusa levou a mão ao queixo, ficou estática, esperando alguma resposta do prana e foi até a varanda tentar sumir. Sob o vento aderiu novamente ao estoicismo, a arma de fé dos sem esperança.
Sentiu um incompreensivel alivio, e lembrou-se da promessa, jamais cumprida, que Max Brod fez para o seu amigo, Kafka, de que queimaria os seus manuscritos e suas obras inéditas. Bem, por sua vez, ela cumpriu a missão à revelia: a missão de extraviar as 2 cartas inéditas do Machado que recuperou em meio ao acidente quando o carro de Ficci foi fechado.
E exposta ao turbilhão de sensações paradoxais de medo e extase, teve uma epifania. Ela percebeu que Machado tinha razão: o que sustenta uma relação é o amor que inclui a contemplacão das idiossincrasias do ser amado. Inclusive, ou especialmente, os aspectos defeituosos da relação. Trata-se de uma complementariedade, não apenas irracional, mas que não deve ser posta ao exame.
Não, pelo menos não antes que se esgote os descaminhos que o afetivo escolhe quando se une a alguém.
Ela, enfim, tomara uma decisão.
Continua